domingo, 28 de junho de 2009

Trapaça


Um dos clichês mais surrados do mundo coloca em pólos opostos animais “inocentes” e humanos “maldosos”. Bichos não têm “malícia”, é o que muita gente diz. Eis uma visão confortável de como as coisas funcionam na natureza, mas está redondamente errada. Deixando de lado as considerações estritamente morais desse clichezão, o inegável é que diversos animais são tão capazes de passar os outros para trás quanto os seres humanos. E, em alguns casos, essa capacidade para a trapaça pode até tomar formas aparentemente meritórias – em especial se você tiver tendência a defender o proletariado, digamos assim. Que tal enganar as “autoridades” para evitar que elas explorem você?

Exageros da antropomorfização à parte, foi exatamente esse fenômeno que um novo e fascinante estudo flagrou. A pesquisa está na revista científica britânica “Proceedings of the Royal Society B” e foi coordenada por Filippo Aureli, pesquisador italiano que trabalha na Universidade John Moores em Liverpool (Reino Unido). Dois dos astros do estudo são velhos conhecidos de qualquer sujeito que já tenha visitado um zoológico ou uma mata do Brasil: o macaco-prego e o macaco-aranha, típicos representantes dos macacos do Novo Mundo. (Você pode ver um belíssimo exemplar de macaco-aranha na foto que abre esta coluna – na verdade existem várias espécies proximamente aparentadas do bicho, apesar do nome popular único.)

Com essa pesquisa, Aureli e seus colegas Federica Amici e Josep Call conseguiram demonstrar pela primeira vez a trapaça ligada à “sonegação de informação” entre macacos das Américas (a capacidade já tinha sido identificada entre primatas do Velho Mundo, em especial os chimpanzés). Em cientifiquês, essa habilidade tem nome um pouco mais tucano: “enganação tática”. A análise feita pelo trio incluiu uma terceira espécie, o cinomolgo, macaquinho comum no Sudeste Asiático (e muito usado como cobaia em pesquisa biomédica). É justamente a comparação interespécies que nos interessa aqui, porque os dados comparativos podem ajudar a traçar uma “receita” evolutiva da enganação tática, ou seja, das pré-condições para que a habilidade trapaceira apareça numa espécie.

Quem é que manda
A utilidade de sonegar informações estratégicas é clara em qualquer espécie social que a gente possa imaginar. Por mais que os membros de uma sociedade de humanos, macacos ou lobos cooperem entre si, eles também competem o tempo todo – por comidas, parceiros e status, só pra citar os fatores principais. E, falando em status, é muito raro, senão impossível, o igualitarismo completo em qualquer grupo social. Hierarquias de dominância mais ou menos severas são a regra, e galgar os degraus mais altos delas, como sabemos, é sempre a maneira mais fácil de obter os recursos que todos cobiçam. Quem está no topo naturalmente vai monopolizar esses objetos do desejo. A menos, é claro, que a ralé seja mais esperta.

Foi o que Aureli e companhia investigaram, com a ajuda de um design experimental que só pode ser descrito como sacana. Eram duas variações do experimento, uma usando caixinhas de paredes opacas e outra com recipientes de paredes transparentes, permitindo a visão de seu conteúdo. Em ambos os casos, as caixinhas eram recheadas com comida diante de um macaco de status social inferior, sozinho. O bicho aprendia a abrir e fechar as caixas e obter o alimento. (No caso do recipiente transparente, isso envolvia um procedimento relativamente complicado – primeiro retirar um pino e só depois abrir a tampa corrediça da caixa.)

E então vinha a malandragem. Os pesquisadores soltavam no recinto um macaco de status dominante e basicamente esperavam para ver como o pobre subordinado reagiria, sem dúvida dividido entre o desejo de se apoderar das guloseimas e o medo de levar uns cascudos do manda-chuva. Numa das variantes do experimento, os pesquisadores até deram uma mãozinha, colocando no recinto uma divisória de plástico que poderia ajudar os macacos plebeus a pegar a caixinha longe dos olhos de seus superiores.

O que aconteceu com cada espécie abarca diferenças e semelhanças um bocado interessantes. Começando pelas últimas: sempre que possível, os macacos de status inferior tendiam a esperar que os macacos dominantes estivessem longe para pegar a caixinha (embora os macacos-pregos fossem mais descarados e às vezes manipulassem o objeto nas fuças dos superiores). É curioso que a divisória de plástico não tenha sido empregada como vantagem pelos bichos – provavelmente porque, segundo os pesquisadores, eles não usam estados mentais dos outros (“legal, agora ele não está vendo, vou abrir a caixa”) para coreografar sua ação, mas sim a simples proximidade física como parâmetro.

E quanto às diferenças? Por um lado, macacos-pregos e macacos-aranhas pertencem a espécies em que a hierarquia de dominância, embora exista, é menos marcada e draconiana do que entre os ditatoriais cinomolgos. Não é de surpreender, portanto, que os dois bichos sul-americanos sejam plebeus mais abusados do que o macaco asiático, que raramente se arriscou a tentar enganar seus chefes. E o macaco-aranha supera até o macaco-prego em cara-de-pau, provavelmente porque, diz o trio de cientistas, o bicho integra uma sociedade com alto nível de fusão-fissão.

Esse tipo de dinâmica social corresponde à flutuação de subgrupos de animais, que se separam para realizar determinadas atividades (fissão) e mais tarde se juntam novamente para interagir (fusão). A experiência com a fusão-fissão teria dado ao macaco-aranha justamente a flexibilidade comportamental necessária para conseguir enganar os chefões do grupo quando necessário.

Parece, portanto, que um pouquinho mais de liberdade social gera pitadas de coragem para tentar, quem sabe, tirar mais que uma casquinha dos poderes estabelecidos. Claro que temos um pulo gigante, abissal, entre os fenômenos presentes em primatas não-humanos e humanos, mas não deixa de ser algo que dá o que pensar.

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